Sobre o pronunciamento de Dilma durante os protestos de junho de 2013


Eu era muito jovem para participar como militante durante a ditatura que começou em nosso país em 1964. Na verdade não havia nem nascido em 1964. O que me lembro de mais antigo desses anos de chumbo é uma propaganda política do governo de então mostrando como havia estourado um “aparelho terrorista” e capturado guerrilheiros.

Bem pequena ainda, perguntei a meu pai se os guerrilheiros eram perigosos, meu pai virou-se para um amigo ao seu lado e comentou: “Está vendo? Eles convencem até as crianças de que estão certos...”. Acho que foi uma primeira experiência de como exercer meu senso crítico em relação à política.



Mas já fui filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), quando ainda era um partido oposicionista e utópico. Nessa época, ele se propunha a ser uma reserva ética em meio da política suja e autoritária do país. Faz bastante tempo, vocês devem imaginar. Também estive no comício do segundo turno da eleição entre Lula e Collor, na Candelária, no Rio de Janeiro, em 1989.

Ainda guardo em minha memória a imagem de pessoas de diversas origens partidárias e sociais saindo dos metrôs e dos ônibus para o comício e espontaneamente cantando o jingle “Lula lá...”. Um momento inesquecível, mas infelizmente não foi possível daquela vez, por muito pouco. Talvez tivéssemos uma país diferente hoje, se diferente houvesse sido o resultado daquela eleição.

Depois disso, creio eu, o PT e Lula decidiram que como não era possível vencer o sistema, deveriam unir-se a ele, fazendo concessões em nome de alguns avanços que buscavam para o país. E assim se deu. Algumas conquistas muito importantes de fato vieram no governo Lula. Só que concessões feitas em troca foram bem além do que uma ética elementar permitiria. Assim, emergiram o mensalão e outras sujeiras escondidas embaixo do tapete, tanto do PT como de outros partidos e grupos da sociedade. Pouco se fez para combater a corrupção, que drena recursos que deveriam servir ao povo, desde sempre.

Penso em tudo isso enquanto assisto ao pronunciamento de Dilma Roussef, nossa presidente sucedendo ao Lula, manifestando-se sobre os protestos recentemente ocorridos em nosso país. Não fui eleitora dela, em relação a quem tenho algumas restrições, além daquelas que passei a ter em relação ao PT. Embora reconheça na presidente (não gosto do termo presidenta) um padrão ético mais elevado do que na maioria de nossos políticos, não vejo em sua pessoa uma líder de fato, nem enxergo nela a resiliência política de Lula. Quanto à sua propalada capacidade como gestora, creio que tem deixado a desejar, fazendo um governo apenas regular.

Algumas dessas referências emergiram em seu discurso desta noite, assim como certas informações  sobre nossa política, de modo geral. Destacarei algumas a partir de trechos de seu discurso.

"Minhas amigas e meus amigos, todos nós, brasileiras e brasileiros, estamos acompanhando, com muita atenção, as manifestações que ocorrem no país. Elas mostram a força de nossa democracia e o desejo da juventude de fazer o Brasil avançar. Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas.”
Não haveria mais como ignorar o barulho das ruas, não é? O discurso chegou atrasado. Porém, é importante perceber que a classe política, espertamente, está se apropriando dos elementos do discurso dos manifestantes e não nos iludirmos com isso.

“Mas se deixarmos que a violência nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade histórica, como também correndo o risco de colocar muita a coisa a perder.”
É fato. Devemos rejeitar qualquer tipo de violência e viés retrógrado que tente se aproveitar dessas manifestações. Mas também devemos estar atentos ao fato de que aqueles que discordam desses protestos, e mais ainda aqueles que serão incomodados por eles (políticos, principalmente), se valerão do argumento de que as manifestações provocam atos de vandalismo como razão para invalidá-las.

“Como presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem, indispensáveis para a democracia. O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático.”
Ponto para Dilma neste segmento. A democracia é um bem precioso que nos cabe preservar com muito zelo. Mas democracia também é acesso aos serviços que o Estado deve assegurar.

“E também está lutando muito para se tornar um país mais justo.”

Lutando muito para se tornar um país mais justo? O sujeito dessa frase é o Brasil. É inteligente deslocar o responsável pela ação para algo tão genérico quanto uma nação, porém se o sujeito fosse o(s) governo(s)... Algo como: O(s) governo(s) está(ão) lutando muito para tornar o país mais justo, certamente não concordaríamos tão rápido assim. A perpetuação de políticas assistencialistas, como o bolsa família, ao invés de ações mais efetivas para o empoderamento das camadas mais desprotegidas da população é, no mínimo, discutível como instrumento de justiça social.

"Não foi fácil chegar onde chegamos (...)”
Outro ponto marcado para Dilma. Com todas as restrições que mencionei ao Partido dos Trabalhadores e a ela, vejo avanços no PT ter assumido o poder e na presença dela, uma ex-guerrilheira, como presidente. Faltou resgatar esta história com mais verdade em sua fala neste momento. Não basta ter História, é fundamental fazer jus a ela.

“Como também não é fácil chegar onde desejam muitos dos que foram às ruas.”
Embora seja verdade, nenhum político diz isso antes de assumir o poder... Os desafios da gestão pública são geralmente grandes e complexos e normalmente não dependem de uma única pessoa ou grupo, mesmo porque se trabalha com o coletivo. Mas quando se coloca a mão na massa e se tem o desejo real  de mudar as coisas para melhor, é possível alcançar esses objetivos.

“Só tornaremos isso realidade se fortalecermos a democracia - o poder cidadão e os poderes da república. Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo. De propor e exigir mudanças. De lutar por mais qualidade de vida. De defender com paixão suas idéias e propostas. Mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira.”
Novamente o discurso da democracia, que verdadeiramente é muito importante, é contraposto à rejeição às ações desordeiras. Tal contraste, obviamente, pretendeu arrefecer o calor das manifestações.

“O governo e sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos. Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública devem coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo. Com equilíbrio e serenidade, porém, com firmeza, vamos continuar garantindo o direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem.”
O discurso contra a violência recrudesce neste ponto. Palavras desse gênero eram esperadas, e mesmo necessárias, neste momento. Mas não apenas isso, precisávamos muito de respostas às causas apresentadas. E elas não vieram de forma clara, como veremos mais a frente.

“Brasileiras e brasileiros, as manifestações dessa semana trouxeram importantes lições: as tarifas baixaram e as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional. Temos que aproveitar o vigor destas manifestações para produzir mais mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira.”

O texto de Dilma reforça a apropriação que buscou fazer do discurso dos protestos, uma ação elementar de convencimento. De modo sutil, soa um pouco como se ela própria houvesse contribuído para que as manifestações obtivessem vitórias. Mas ela apenas se calou, devemos nos lembrar.
“A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso.”
Busca do resgate histórico individual e de seu grupo político. Mas certamente os idealistas de esquerda não sofreram para que um partido corrompesse políticos em nome de um projeto próprio para se manter no poder...

“ A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada. E ela não pode ser confundida com o barulho e a truculência de alguns arruaceiros. Sou a presidenta de todos os brasileiros. Dos que se manifestam e dos que não se manifestam.”

A presidente, neste trecho, não apenas se apropria do discurso dos manifestantes como, paradoxalmente, busca o apoio daqueles que se opõem aos protestos.  Sim, existem os que não concordam com estas manifestações. Eles apenas estão calados, em sua maioria, ou não podem ser ouvidos, diante do barulho dos que clamam por mudanças.

“A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem. Disso eu não abro mão.”

Dilma procura aqui aferrar-se à imagem de gerentona que combate os “malfeitos” em seu governo. Mas é sabido que ela foi leniente com vários subordinados seus e de outros partidos, até que os problemas chegassem ao grande público e ela fosse obrigada a tomar atitudes mais efetivas.

“Esta mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as instituições e os governos devem mudar.”
Este texto poderia estar escrito em um dos cartazes das manifestações, apropriação, mais uma vez, do discurso das massas pela presidente. Ocorre que ela é parte das respostas para estes problemas, que já conhecia muito bem. Ou deveria conhecer.

“Irei conversar, nos próximos dias, com os chefes dos outros poderes para somarmos esforços. Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos.”

Esse é o papel da presidente, sendo o melhor ponto de seu discurso a meu ver. Apenas receio  pactos entre políticos, que em sua maioria não têm se mostrado nem um pouco confiáveis, nem conosco, nem entre si. Espero que as vozes das ruas os assustem a ponto de terem um pouco mais de integridade.
“O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que priviligie o transporte coletivo.”
A Lei 12.587/2012 instituiu a nova Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), estabelecendo diretrizes e princípios para que os municípios planejem o desenvolvimento urbano e a melhoria de serviços e infraestruturas que garantam os deslocamentos de cidadãos e cargas nos territórios das cidades, segundo informações do próprio congresso. Após mais de um ano, ainda vão elaborar o plano que coloca em execução as propostas da lei? E depois disso,  imagine quanto tempo vai levar para ser colocado em prática, principalmente se interferir nos privilégios das concessionárias de serviços públicos de transporte.
“Segundo, a destinação de 100% do petróleo para a educação.”
Nada contra recebermos mais verbas para a Educação. Mas as questões que envolvem as melhorias na educação são bem mais complexas do que apenas destinação de verbas, envolvendo a corrupção e gestão ineficiente dos recursos atualmente investidos, entre outros fatores. E no caso das verbas do petróleo, a Dilma lança o problema no colo dos entes federativos, que brigam entre si por estas verbas, sem que o governo federal tenha conseguido resolver o problema politicamente, como era seu papel.
“Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS.”

Esta, sem dúvida, foi a maior bola fora de todo o discurso. Como assim, importar médicos? Depois de toda a propaganda em torno do PROUNI e dos investimentos em Educação Superior, não temos médicos em número suficiente? Talvez alguém possa então responder que temos médicos, mas eles não querem ir para o interior ou para regiões mais remotas. Segundo o pessoal da área médica, não é bem assim. Novamente, a questão é bem mais complexa. Mas em poucas palavras, os médicos querem ser bem remunerados e terem condições adequadas de trabalho. E não os têm na rede pública, em especial no caso das prefeituras de regiões mais remotas, que não lhes oferecem essas condições.

“Anuncio que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências. De sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente.”
Reforço à postura democrática de abertura ao diálogo, a principal força positiva de seu discurso. A questão maior é se estas conversas ficarão apenas nisso: conversas, ou se elas se converterão em base para ações concretas, que são urgentes na visão da população.
“Brasileiras e brasileiros, precisamos oxigenar o nosso velho sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e acima de tudo mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.”
Embora esta fala seja consistente, os elementos do discurso contra a corrupção no discurso foram fracos. Antes, a menção ao perfil de gerente inflexível com os “malfeitos” (não tão próximo assim da realidade). Agora apenas a referência a estruturar “mecanismos” para assegurar diálogo e transparência.
“Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular. É um equívoco achar que qualquer país possa prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo democrático.”
Ponto positivo, mais uma vez, para a menção às questões democráticas e para o combate às vozes golpistas, que sempre se fazem ouvir nestes momentos. Entretanto, é de se frisar o quanto a corrupção, mais inclusive do que a violência, mina as bases da democracia quando suas instituições são usadas em benefício de uma elite política e em detrimento das necessidades da população. Como tem acontecido no Brasil.
“Temos de fazer um esforço para que o cidadão tenha mecanismos de controle mais abrangentes sobre os seus representantes. Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção. A Lei de Acesso à Informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos poderes da república e instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento do cidadão para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. A melhor forma de combater a corrupção é com transparência e rigor.”
Muitos mecanismos existem, mas eles não são usados, ou quando o são, vergonhosamente os manipulam. Punição vigorosa aos corruptos... E que a população possa rejeitá-los nas urnas também.
“Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas, é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a saúde e a educação.”
Sim, financiamento em condições inéditas do BNDES aos governos do estado, ou seja, dinheiro público também (que na verdade deveria ir para financiar as micro e pequenas empresas, gerando mais empregos permanentes).

“Na realidade, nós ampliamos bastante os gastos com saúde e educação. E vamos ampliar cada vez mais. Confio que o Congresso nacional aprovará o projeto que apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente com a Educação.”
É preciso investir mais em serviços à população... Porém, mais do que isso, é preciso investir BEM. Assistimos a muitos desperdícios e desvios de dinheiro público. Novamente a questão dos royalties é apresentada como panaceia...
“Não posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que recebemos deles. Respeito, carinho e alegria. É assim que devemos tratar os nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência pacifica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa.”

Não estamos tratando mal nossos visitantes, nem é esta nossa tradição e perfil, muito pelo contrário. Apenas não podemos nos endividar ou desviar recursos de prioridades para atender a eventos cujos “legados” não têm se mostrado como tais onde as últimas copas aconteceram.

“Minhas amigas e meus amigos, eu quero repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança. Eu quero dizer a vocês que foram, pacificamente, às ruas: Eu estou ouvindo vocês. E não vou transigir com a violência e a arruaça. Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país".
Dilma demorou a se pronunciar. Mas quando o fez, ainda que seu discurso tenha chegado atrasado, poderia ter se afirmado como uma líder, ao invés de recitar, sem convicção, um texto de pontos recorrentes escrito, provavelmente, por várias pessoas, entre eles, certamente, algum marqueteiro profissional. Talvez se ela houvesse falado com sua própria voz mais tempo... Talvez, pudéssemos tê-la ouvido com mais empatia. Porque seu discurso, ao menos para mim, soou vazio, em sua maior parte.

Ainda assim, esperamos que os compromissos com a democracia e com as reformas necessárias que foram apresentadas possam vir.  Sabemos que várias causas pelas quais clamamos não dependem apenas do poder executivo.  Mas esperamos que ele possa atuar como líder dos processos de transformação que reivindicamos. 


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